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Henri Toivonen e Sergio Cresto durante o Rally de Monte Carlo (Foto: Motorsport Images) |
Existe
uma unanimidade entre os fãs de automobilismo que a década de 1980 foi uma das
mais espetaculares para o esporte. Com o uso dos motores turbo pelas categorias
de ponta, criou-se uma áurea de superpotência e desafio que perdura até os dias
de hoje onde o piloto precisava de algo a mais para domesticar os carros de
corrida daquele tempo, onde a variação de potência imposta por aquelas máquinas
podiam chegar e até mesmo ultrapassar os 1000cv – indo até os estratosféricos
1500cv de potência usada em qualificações, especialmente na Fórmula-1. Foi uma
época dourada onde a busca pela potência significava um ganho importante frente
os rivais, ao mesmo tempo em que o estudo em túneis de vento aumentava
consideravelmente e os carros passariam a ser esculpidos cada vez mais em busca
da melhor força descendente. Aqueles anos 1980 foram o último elo com o
automobilismo puro em sua concepção, onde o público lotava os autódromos e/ou
invadiam as pistas para ver de perto os pilotos desafiarem a gravidade e a física
em busca de seu melhor em carros que pareciam bestas enjauladas, tamanha
potência que eram empregadas ali. Essa competição heroica agora começava a dar
lugar a um automobilismo que entrava numa era de eletrônicas e supercomputadores,
que ajudariam ainda mais os engenheiros e pilotos a chegarem próximos da
perfeição, mas que tiraria o encanto da boa e velha corrida de carros. Bom,
isso é uma discussão para uma outra oportunidade.
Sobre as
categorias, o WRC foi uma destas que mais se destacaram naquela década. Talvez
a que mais tenha se destacado, para ser mais direto. A adoção do regulamento do
Grupo B em 1982 foi a porta de entrada para um dos períodos mais espetaculares
de uma das disciplinas mais completas do esporte a motor no mundo. A
generosidade deste regulamento, onde o desenvolvimento, introdução de novas
tecnologias e potência eram praticamente ilimitadas, dava as fabricantes um
horizonte a ser explorado de forma inesgotável – o público também fazia parte
do show numa irresponsabilidade tresloucada em busca da melhor imagem, que às
vezes custava muito caro. Nesta toada em busca do melhor, a competição foi
premiada com carros que se tornaram referências quando se fala no nome do Grupo
B: Audi Sport Quattro S1, Lancia 037 e
Delta S4, Peugeot 205 T16, Renault 5 Turbo, Ford RS200, apenas para citar
alguns, foram as grandes estrelas de um período curto, mas de muito sucesso,
que ajudou a popularizar e imortalizar pilotos como Ari Vatanen, Marku Alen,
Michèle Mouton, Walter Röhr, Hannu Mikkola, Juha Kankkunen e tantos outros. Mas
houve um em especial que parecia pertencer a uma classe a parte, onde suas
prestações já davam nas vistas desde 1980 e em 1986 parecia estar pronto para
chegar ao olimpo: Henri Toivonen já era reconhecido como um dos melhores e a
temporada de 1986 parecia ser o momento ideal para que o jovem finlandês
chegasse ao título mundial.
Henri
Toivonen teve o seu primeiro resultado a nível mundial quando disputou o Rally
Artict de 1978 – que foi a segunda etapa do Campeonato Europeu de Rally e
também da Copa FIA para Pilotos, que foi a precursora do WRC que entraria em
vigor a partir de 1979 – com um Chrysler Avenger e terminou em segundo, com a
vitória ficando para Ari Vatanen e o terceiro para Markku Alén. Toivonen não demorou muito a conquistar a sua
primeira vitória no WRC, que aconteceu no Lombard RAC Rally de 1980 quando ele,
em parceria com o navegador Paul White, venceu ao volante de um Talbot Sunbeam
Lotus e tornou-se o mais jovem a vencer uma prova do WRC quando tinha 24 anos –
tal recorde durou até 2008 quando Jari-Matti Latvala, aos 22 anos, venceu o
Rally da Suécia. A velocidade e virtuosidade de Toivonen passaram a ser sua
marca registrada no decorrer dos anos, assim como alguns acidentes: o principal
e mais grave até então foi quando Henri já estava pela Lancia em 1985 quando
bateu forte num muro de tijolos durante o Rally da Costa Smeralda, então oitava
etapa do Campeonato Europeu. Isso custou a Toivonen alguns ferimentos nas
costas e três vertebras quebradas que o deixou fora de combate até que voltasse
no mês de agosto a competição, quando participou do 1000 Lakes Rally
(Finlândia) e terminou em quarto . O finlandês ainda teria outros bons
resultados naquele resto de 1985 ao terminar em terceiro no Rally de Sanremo e
vencendo o Lombard RAC Rally – 12ª e última etapa daquele mundial – justamente
na estréia do Lancia Delta S4 que substituía o 037 – foi também a única
dobradinha da Lancia naquele ano com Markku Alén ficando em segundo com o outro
Delta S4. O título de 1985 do WRC ficou para Timo Salonen com o Peugeot 205 16
marcando 127 pontos.
Para
1986, a temporada se desenhava da melhor forma e era possível imaginar a grande
disputa que se avizinhava ao olhar a constelação que as três principais
fabricantes dispunham: Peugeot com Timo Salonen, Juha Kankkunen, Michèle Mouton
e Bruno Saby; Audi contava com Walter Röhrl e Hannu Mikkola; e a Lancia com
Markku Alén, Henri Toivonen e Miki Biasion. Ari Vatanen ficaria de fora daquela
temporada, ainda recuperando-se do grave acidente que teve no Rally da
Argentina de 1985.
Uma aula de Henri Toivonen
em Monte Carlo
O Rally
de Monte Carlo, que estava em sua 54ª edição, abriu a temporada de 1986 sendo
realizado entre os dias 18 e 24 de janeiro. Bem diferente dos dias atuais, este
Rally era colossal com seus 36 estágios especiais divididos em quatro etapas(atualmente são 15
estágios) e um total de 881.20km de distância. Apesar de ser um local bem
conhecidos por todos, há de convir que as condições de tempo e traçado tornam
este rally num dos mais desafiadores do calendário. Um teste vigoroso logo na
abertura do campeonato, saudando um dos mais prestigiados e importantes rallys
do mundo.
Para a Lancia e,
principalmente Henri Toivonen, era a oportunidade de medir forças com seus
rivais diretos já com o S4 muito bem desenvolvido e com uma vitória no bolso,
conquistada no derradeiro evento de 1985 e justamente com o finlandês ao
volante. Para Henri, que começaria a partir daquele evento em Monte Carlo a sua
parceria com Sergio Cresto – ex-navegador de Attilio Bettega, que falecera no
Rally da Córsega de 1985 – era também a grande chance de iniciar o campeonato
em pé de igualdade com seus rivais e a sua vitória no Lombard RAC Rally de 1985
lhe dava as devidas credenciais para ser um dos principais favoritos ao título.
O reconhecimento de seus companheiros de Lancia, Alén e Biasion, mais do chefe
de equipe Cesare Fiorio, sobre a facilidade que Toivonen havia encontrado com
aquele Lancia Delta S4 desde a estreia do carro no rally inglês, reforçava
ainda mais esta imagem de que o finlandês seria um dos grandes favoritos para
1986. Fiorio relembra um pouco sobre o desenvolvimento do Delta S4 e também
sobre Henri: “O nível ao qual desenvolvemos o S4 foi algo
absolutamente incrível. Demorava 2,8 segundos para ir de zero a 100
quilômetros por hora, que era o desempenho de um carro de F1 ”, diz Fiorio. “Toivonen era o único motorista que
poderia usar todo o potencial deste carro.”. Aquele Rally de Monte
Carlo mostraria o quanto que Toivonen e Lancia Delta S4 estavam em perfeita
sintonia, formando uma poderosa – e impressionante – simbiose.
Havia
outro fato que talvez não passasse pela cabeça de Henri Toivonen naquele
momento, mas que seu pai, Pauli Toivonen, conhecia muito bem. A principio é
preciso destacar que Pauli foi um dos melhores rallymen da Europa na década de
1960, vindo a conquistar o título europeu de 1968, mas antes disso ele teve uma
vitória controversa em Monte Carlo dois anos antes: Pauli, que pilotava um
Citröen DS21, terminou em quinto naquele evento, mas irregularidades nos faróis
dos carros de Timo Mäkkinen, Rauno Aaltonen, Paddy Hopkirk – estes sendo os
três primeiros colocados e pilotando carros da Mini Morris – e Roger Clark
(Ford Cortina) o quarto colocado, renderam a eles a desclassificação do Rally.
Automaticamente, a vitória ficou para Pauli que ficou um tanto constrangido com
a tal situação de ter vencido um Rally tão importante quanto aquele de Monte
Carlo sob a luz da polêmica. Pauli teve outros dois bons resultados em Monte
Carlo: foi segundo em 1963 com um Citröen DS19 e voltou a ficar em segundo na
edição de 1968, desta vez pilotando um Porsche 911. Mas aquela vitória de 1966,
do modo como foi conquistada, ainda incomodava Pauli Toivonen e dessa forma a
edição de 1986 seria uma boa oportunidade de Henri cravar o sobrenome dos
Toivonen de forma correta no histórico de vencedores do Rally de Monte Carlo.
O Rally começou da
melhor forma possível para a Lancia, tendo em Miki Biasion o líder do curto
estágio de 2,60km de Aillon-Le-Jeune. Mas a partir do segundo estágio Henri
Toivonen e Sergio Cresto assumiram a dianteira marcando um grande desempenho.
Do segundo estágio em La Soffaz – Samuaz até o 22º realizado em Col de Garcinets,
Toivonen/ Cresto venceram sete estágios e tinham uma boa vantagem sobre o Audi
de Walter Rohrl, porém um fato que atrapalharia bastante o andamento da dupla
acontecera entre os estágios 12 e 13: entre as cidades de Burzet (12º estágio)
e Saint Montan (13º estágio), o Lancia de Toivonen e Cresto foi acertado por um
carro civil e isso custou ao S4 um punhado de problemas como numa das rodas,
chassi entortado e carenagem dianteira bem danificada. Apesar destes danos,
Toivonen – que ainda teve uma das pernas machucada no acidente – foi capaz de conduzir o carro pelos estágios
seguintes mantendo a liderança, mas perdendo a diferença conforme iam parando
nos postos programados para fazer os reparos. Cesare Fiorio recorda a situação: “Não tivemos tempo de consertar completamente”, lembra Fiorio. “Tínhamos apenas
alguns minutos em cada parque de serviço - 5 minutos aqui, 5 minutos
ali. O carro ainda estava funcionando e ele foi capaz de continuar, mas o
S4 não foi capaz de atingir o desempenho máximo.
“Em todos os parques de manutenção, fomos consertando aos
poucos.” Porém, os mecânicos da Lancia
conseguiram fazer o máximo para que o carro pudesse voltar a competir de forma
honesta, mesmo que o desempenho deste não fosse o mesmo de antes do incidente. Mas
todos sabiam que aquele enorme problema poderia custar-lhes uma vitória que
parecia caminhar certamente para o finlandês.
Como era de se esperar, a liderança foi arrematada por Timo
Salonen – que veio escalando a classificação de modo preciso – a partir do 23º
estágio que foi realizado entre Sisteron-Thoard. Masisso foi possível após
mais um revés que a Lancia sofreria: no 22º estágio Toivonen fez a sua parada
para continuar os reparos no S4, mas ali mesmo deveria ter sido feito uma troca
de pneus que consistia na retirada dos pneus cravejados para uso em neve para
os slicks, afinal eles entrariam em pista asfaltada. Mas com o atraso de
Toivonen, apenas os reparos foram feitos e ele resolveu fazer aquele estágio de
Col de Garcinets com os pneus para neve. Como relembra Fiorio, o resultado não
foi dos melhores: “Uma troca de pneu levaria 40-50 segundos. Ele chegou atrasado e
tivemos que consertar o carro, o que não deu tempo de trocar os pneus ”, conta
o italiano. “Ele disse, 'Me deixa ir, eu quero fazer a etapa com esses
pneus', que não eram os melhores para aquela etapa. Ele não recebeu
nenhuma penalidade no Time Control, mas não foi uma atuação vitoriosa naquele
local. ” Miki Biasion venceu aquele estágio para a Lancia, mas para
Toivonen/ Cresto acabou saindo caro o uso daquele tipo de pneu no asfalto,
vindo causar um furo e permitir que Timo Salonen assumisse a liderança a partir
do 23º estágio.
Com todos estes problemas enfrentados por Toivonen/ Cresto
desde o incidente, há de se destacar o grande trabalho da Lancia em torno de
tudo isso. A estrutura montada com o uso de helicópteros, que sobrevoavam os
trechos adiante para que trouxessem informações sobre as condições do traçado,
de olheiros que tinham uma visão mais apurada sobre tudo que acontecia nos
locais onde os carros passariam, deu uma sobrevida para que Toivonen e Cresto
continuassem no páreo. Mas após cinco estágios de liderança por parte de Timo
Salonen, a queda de braço passou a pender para Toivonen.
Henri passou a entender como tirar proveito de um carro que
estava com sérios problemas de condução devido o entortamento do chassi e a
partir daí ele começou a se aproximar aos poucos de Salonen, sempre tirando uma
boa diferença. O ponto de virada começou já no inicio da quarta e última etapa
que foi aberta no 26º estágio em Col de La Madone com vitória de Salonen e
depois no 27º estágio em Col de Turini, onde Henri Toivonen passou para vencer e
mais tarde reassumir a liderança no estágio seguinte em Saint Savour. A escolha
dos pneus é que deu o tom final daquele Rally, uma vez que a diferença entre
Toivonen e Salonen beirava os 30 segundos – o que é uma diferença irrisória
tratando-se de provas de rally. A segunda parte dos estágios de Col De La
Madone (31º estágio) e Col de Turini (32º estágio) mudou o rumo da história a
favor do piloto da Lancia frente a batalha que estava a empregar contra o
Peugeot de seu compatriota Salonen: antes de realizar a última parada para
manutenção no carro, Fiorio pediu para que os mecânicos colocassem faróis
amarelos ao invés dos brancos no Lancia.
Ele acreditava que ao verem as luzes
amarelas, os fãs franceses não jogariam neve na pista por pensarem que o carro
que se aproximasse pudesse ser o Peugeot de Salonen. Essa foi a primeira jogada
de Cesare, que logo depois, contrariando as informações de Vittorio Caneva – navegador de rally e que estava naquela etapa
a serviço da Lancia – de que não necessitaria do uso de pneus cravejados para o
carro de Toivonen pois o trecho não tinha neve. Com essa informação em mãos e
acreditando que a Peugeot estava ouvindo a conversa, Fiorio pediu para que seus
mecânicos montassem os jogos de pneus cravejados... apesar do estranhamento de
Caneva ao ouvir exatamente o contrário do que ele havia dito, a troca dos pneus
se deu por Slicks para Toivonen poder enfrentar Salonen na parte noturna. E isso
foi uma cartada de mestre: mesmo tendo que se segurar em trechos onde a pista
estava úmida, Henri conseguiu apanhar a parte seca mais adiante para abrir uma
vantagem de 4 minutos que acabou lhe dando a vitória naquele Rally de
Montecarlo.
No meio daquela intensa batalha contra Salonen, Henri chegou a
declarar que “se não tiver problemas
mecânicos, vencerei o rali. O Timo é um piloto que gosta de jogar pelo seguro
nunca correndo grandes riscos. Não creio que ele vá atacar a minha posição.”. Henri
conhecia muito bem seu compatriota e isso ficou reforçado nas palavras do
próprio Timo Salonen logo após a prova: “Monte Carlo faz parte do estilo de provas
que pessoalmente não me agrada: quando tenho que conduzir no asfalto molhado, é
uma verdadeira catástrofe. (…) Nesse aspeto o Henri tem uma vantagem grande
pois, antes de vir para os ralis, disputou provas em circuito, pelo que sabe as
trajetórias que há-de tomar. Pela minha parte e como só sei andar de lado,
quando tenho que conduzir nesse tipo de piso, nunca consigo estar à vontade.”
Henri Toivonen e Sergio
Cresto venceram um Rally de Monte Carlo desgastante, mas acima de tudo haviam
mostrado o potencial do Delta S4 frente aos rivais e isso era algo a temer.
Para Toivonen, aquela conquista, a terceira de sua carreira no WRC, significava
o que há muito tempo já se sabia que era o seu talento impressionante na
condução de um carro de rally. Mesmo com um carro torto por conta do incidente,
ainda conseguiu tirar o que pôde e ainda mudar a pilotagem para ir além e
buscar uma vitória quase que improvável. Foi também uma conquista que deixou o
nome dos Toivonen imortalizado de vez na lista de vencedores em Monte Carlo e
dessa vez com o real gosto de ter sido feita da melhor forma possível, sem
desclassificações e nada. Pauli Toivonen, sem duvida alguma, se sentiu aliviado
com aquela conquista de seu filho.
Enquanto que aquela
vitória seria festejada e Henri apontado como o grande candidato ao título, era
se tornaria melancólica pelo que viria acontecer três meses depois.
Hoje completa exatos 35
anos da morte de Henri Toivonen e Sergio Cresto durante o Rally da Córsega.