Uma família feliz: o "Dream Team" da Mclaren de 1988. |
Houve um momento no final dos anos oitenta em que as coisas estavam tensas. A F1 vivia sua transição final dos motores turbo para os aspirados de 3.500cc e enquanto isso, dentro da até então poderosa Mclaren, uma briga nascia a passos largos e que pelas próximas temporadas estremeceria o chão por onde passasse. Senna e Prost protagonizaram lances e farpas que foram mostradas e trocadas pela TV e imprensa, tornando-se num dos capítulos mais interessantes da F1 moderna. Foi uma disputa que ultrapassou todos os limites, sem exceção alguma, e que de algum modo quase os levou a conseqüências mais sérias.
Sabe-se que Ron Dennis sempre teve um olho em Ayrton Senna, desde a época da F3 inglesa no ano de 83. Naquele mesmo ano deu ao piloto brasileiro a chance de pilotar um Mclaren, junto dos pilotos Brundle e Bellof. Ele foi o melhor do teste, mas Ron já havia acertado tudo com Prost e Lauda para a próxima temporada. Senna seguiu para Toleman em 84, na mesma altura em que a Mclaren começava seu domínio na F1. Passaram-se as temporadas e quatro anos após seu famoso teste na Mclaren, ele assinou com o time de Woking por três temporadas levando consigo os motores Honda, que tinham arrasado a concorrência em 87 com os títulos de pilotos e Construtores com Williams, sem contar, claro, que ele tinha experiência com esses motores da temporada passada, quando os usou na Lotus. Chegando à Mclaren, ele teria certo trabalho para se entrosar, o que é natural para qualquer piloto recém chegado numa equipe e pior quando se depara com um bicampeão do mundo, como era Prost naquela altura. Uma equipe formada e que trabalhava junto há alguns anos e tinha em Alain seu grande líder. Furar a bolha não seria nada fácil.
No meu modo de ver, para Prost, a entrada de Senna foi encarada normalmente sem enxergar no brasileiro um ameaça. Ele havia trabalhado nas outras 4 temporadas anteriores na Mclaren com Lauda, Rosberg e Johansson sem ter nenhum problemas com estes. Com Lauda foi companheiro em 84 e 85, perdendo o mundial para o austríaco por meio ponto no primeiro ano enquanto que no segundo já pegou Niki numa fase mais desmotivante da sua carreira. Já Rosberg, também foi um bom convívio, se bem que o finlandês em algumas oportunidades chegou a importuná-lo, mas por azares de quebras, não conseguiu êxito. Stefan Johansson foi mais tranqüilo ainda, era com se ele não tivesse um companheiro. Talvez por isso não tenha implicado com a entrada de Senna na Mclaren, apostando num bom relacionamento dentro e fora da pista. Se fosse outro teria barrado Ayrton, assim como Piquet o barrou em 84 na Brabham. Engraçado que Senna aprendeu bem a lição e também brecou a intenção da Lotus em trazer o desempregado Warwick para a temporada de 86. Seria uma tática muito usada durante os anos 90.
Um dos raros momentos de conversa entre Senna e Prost. A foto é de 88. |
John Watson, ex-piloto da Mclaren, havia conversado com Senna no inicio de 88 focando o assunto em como poderia superar Prost. O irlandês se surpreendeu com a resposta de Senna, quando ele, Watson, aconselhou o piloto a não ter um confronto direto com Alain tentando apenas superá-lo na astúcia. John relembrou a resposta de Senna: “Ele falou-me que iria derrotar Prost com maior preparação física, maior motivação e maior dedicação e que ia fazer tudo para conseguir pilotar mais depressa, mais consistentemente e durante mais tempo do que o francês”. Realmente ele estava disposto a bater Prost naquela temporada. Daí pode tirar em que grau de confiança se encontrava Senna naquele momento. Para Jo Ramirez, ex-coordenador da Mclaren, Senna poderia ser massacrado por Prost que tinha um domínio cerebral absurdo sobre seus companheiros. Foi assim que aniquilou com facilidade Rosberg em 86, tanto que o finlandês encerrou sua carreira no final daquele ano. Será que Senna bateria o bicampeão facilmente ou ele seria destroçado pelo francês?
A resposta veio durante a temporada de 88. Era o último ano dos motores turbo que seriam substituídos de vez pelos aspirados em 89. Naquele ano, apenas Mclaren, Ferrari e Lotus ainda usavam os turbo, que pelo regulamento, passariam a ter pressões de 2,5 bar ao invés dos habituais 4; capacidade do tanque caiu de 195 para 150 litros e a potência despencou dos quase 1000cv para cerca de 680cv. A Honda produziu um motor com as novas especificações que se revelou um canhão e também ultra confiável, tanto que a única quebra no Mclaren foi em Monza com Prost. Também vale dizer que Gordon Murray contribuiu e muito para o sucesso do duo. Baseando-se no seu fracassado projeto “Brabham Skate”, o BT56, ele fez um carro parecido naquele ano que ficou denominado como MP4/4. Juntando o ótimo chassi mais o potente motor Honda, Prost e Senna conquistaram 15 vitórias em 16 GPs disputados naquele ano para a Mclaren, tornando-se um recorde que foi igualado pela Ferrari em 2002 e 2004. Ayrton venceu oito corridas contra sete de Alain, conseguindo assim seu primeiro mundial. Mas as primeiras faíscas entre eles aconteceram, se bem que um pouco tardio, quando Senna espremeu Prost no muro dos boxes em Estoril no momento que ambos disputavam a liderança da prova. Tinha sido uma reação do piloto brasileiro a primeira largada (a prova teve duas largadas devido um múltiplo acidente na primeira partida), ao pensar que Alain o tinha jogado para a grama. Isso causou um mal estar entre os dois, que mesmo após uma conversa a sós, não foi totalmente resolvida.
A primeira rusga: Senna prensa Prost no muro do circuito de Estoril, mas o francês leva a melhor e vence a corrida |
Você quebrou as regras: Senna passa Prost na Tosa, derrubando o acordo de não ultrapassar na primeira curva. Ali a guerra se iniciava. |
O famoso enrosco de 89: Senna ainda voltou, venceu, mas não levou. Prost é campeão. |
O brasileiro chegou à Suzuka com 60 pontos contra os 76 de Prost (já contando com os quatro descartes) e precisando da vitória para levar a decisão para Adelaide, Austrália. Senna marcou a pole, mas falhou na arrancada deixando assim que Prost assumisse a primeira posição. Foi uma perseguição no estilo gato e rato, com Prost a aumentar a diferença e Senna diminuindo em seguida. Na 47ª passagem, na entrada da chicane, Ayrton vê a chance de ultrapassar Prost e este lhe fecha a porta e dois Mclarens saem enganchados para a área de escape. Alain abandona, Senna volta pra pista com ajuda dos comissários de pista, vence a corrida, mas é desclassificado em seguida por ter evitado a chicane. Assim o título mundial é dado para Prost e Senna revolta-se. A Mclaren até tentou reverter a situação nos tribunais, mas foi irreversível. Com mais este acontecimento, os problemas de Senna aumentaram ainda mais. Agora sua briga não era só com Prost, mas também com outro francês, o presidente da FIA Jean Marie Balestre no qual ele, Senna, havia acusado o presidente da FIA e FISA de favorecer Alain. Isso complicou de vez sua situação e Balestre, furioso com suas declarações, disse que se o piloto não se desculpasse publicamente sua superlicença seria retirada e assim ele não poderia participar da temporada de 90. Foi uma jogada pesada do presidente e isso fez com que Ron Dennis corresse para tentar convencer Ayrton a se desculpar. Ron conseguiu e em fevereiro de 90, algumas semanas antes do inicio do mundial, Senna enviou para toda imprensa e também Balestre, uma carta dizendo que havia se excedido nas suas declarações e que a prova de Suzuka nunca fora manipulada. Balestre acabou por liberar a superlicença e Senna pode correr. Passados alguns anos, Balestre disse que realmente favoreceu Prost com a punição dada a Ayrton. Talvez os dois tenham acertado as contas lá no céu, ou ainda estão por acertar...
Passado toda essa turbulência, as coisas pareceriam calmas no inicio de 90. Prost tinha saído para a Ferrari, formando dupla com Mansell e Senna teria como parceiro Berger na Mclaren, ou seja, uma troca entre as grandes. A Mclaren tinha a força do motor Honda e os trabalhos de Senna e a Ferrari formando uma dupla fortíssima, tendo em Prost a esperança de voltar a ser campeã mundial após dez anos.
Mas as coisas andaram diferentes para os dois oponentes. Enquanto que Senna viveu maravilha na Mclaren por não ter um companheiro que o importunasse, Prost fez o inferno na Ferrari ao reclamar da falta de pulso firme na direção da equipe no episódio de Estoril, quando Mansell, no estilo Senna, prensou-o no muro dos boxes após a largada fazendo-os perder a dobradinha que tinham conquistado nos treinos para Senna e Berger. O leão venceu e Prost teve que se contentar, de cara amarrada, a ficar atrás de Ayrton.
Um ano depois Senna e Prost voltaram a dividir as atenções pela disputa de um título. Desta vez era Ayrton quem tinha a vantagem na pontuação com 78 contra 69 pontos de Prost e assim o francês deveria bater Ayrton para levara a decisão para Austrália. Assim como em 89 Senna marcou a pole, mas ao invés de largar da parte limpa a posição do pole foi mudada par a parte interna, a mais suja da pista. Ayrton não ficou satisfeito, claro, e isso era mais um fato para esquentar ainda mais a rivalidade entre os dois, que esteve a ser a sinalizada uma trégua em Monza durante a coletiva após a prova em que os dois responderam a uma pergunta se fariam a pazes, dando tapas nas costas um do outro. O tapa maior viria na largada de Suzuka.
Como era de se esperar, por estar na parte limpa, Prost saiu melhor e Senna o seguiu de muito perto e quando o francês mergulhou para fazer a primeira curva, Ayrton já se encontrava com o bico de seu Mclaren colado na lateral do Ferrari. O resultado: ambos bateram e foram para a caixa de brita. Prost teve sua asa traseira arrancada enquanto que Senna foi para parar perto da barreira de pneus com a frente do carro avariada. O mundial de 90 tinha sido decidido e Senna se vingado de Prost com uma batida, talvez um tanto mais agressiva, pois naquele ponto poderia ocorrer um desfecho trágico. Ambos voltaram pra os boxes sem trocar uma só palavra pelo caminho. Mas via imprensa, soltaram os cachorros:
Ayrton Senna- “ Acho que conquistei estes título tijolinho por tijolinho, em todos os GPs, num trabalho longo, meu e de toda equipe. Em 1989 fiz um campeonato e perdi nas circunstâncias que todos conhecem. Naquela vergonha. Depois foi toda aquela confusão.
Por tudo que fiz este ano, ganhando mais poles, mais vitórias, mais segundos, e mais terceiros, acho que mereci o campeonato. Claro que gostaria de ter ganho aqui no Japão defronte desta torcida maravilhosa, mas não aconteceu.
Se eu tivesse largado da posição que pedi aos organizadores, teria pulado na frente.
Dedico esta vitória no campeonato a todos que lutaram contra mim. Eles fizeram-me muito mal. Pra eles esta é a demonstração de quem é o verdadeiro campeão mundial."
“Depois de duas semanas ainda continuo a ver o caso da mesma forma: foi um acidente de corrida, inesperado para mim naquelas circunstâncias. Mas aconteceu, e não havia muito o que eu pudesse fazer no momento em que eu realizei que ia dar naquilo quando o Prost decidiu voltar para a trajetória. Foi muito triste terminar a corrida assim.Acho que quem não poderia arriscar, o fez na hora errada. Ele abriu e sabia que eu tinha de tentar passar por dentro. Tentei e ele fechou a porta. Sei que estava numa posição difícil. Se entrasse por fora, eu o passaria por dentro na aproximação. Se fechasse demasiado a curva sairia por fora, e eu o passaria nessa altura. Deveria ter mantido a trajetória, porque tinha um carro muito melhor que o meu e muitas voltas para ganhar a corrida.
Mas tudo começou errado quando não quiseram trocar o lado da ‘pole position’.”
Alain Prost- “Pensava que o Ayrton era um piloto correto,mas hoje mostrou ser capaz de tudo para ganhar um campeonato. Não posso aceitar perder um título desta forma. É preciso fazer alguma coisa nos regulamentos para que isto não se repita. Assim realmente não estou interessado em continuar”
“Estou absolutamente seguro que ele me bateu deliberadamente. 100% seguro. Foi numa curva que eu faço de pé em baixo, em 5ª marcha, e o que ele fez foi cortar a curva e bater na minha asa traseira. Vejam bem que ele na me bateu na roda, mas sim no meio do aerofólio traseiro, sem mesmo bater na roda. Literalmente empurrou-me por detrás! Por isso que não quero falar mais a este respeito, porque de nada serve para mim, para F1 ou para o esporte. Tudo é muito ruim. Chegou a um ponto em que é muito difícil trabalhar e, como disse no Japão, isso pode-me levar até a abandonar. Tenho filho, um de 9 anos, e será muito desagradável sentir que ele pode pensar que estou a proceder de modo errado no esporte. Quero ver como as coisas podem mudar e como a FISA pode controlar este tipo de acidentes, para me decidir continuar, até porque gostaria muito de continuar a trabalhar com a equipe Ferrari”
Não vou tirar o pé: Senna já havia alertado isso após terem lhe negado a troca da posição do pole. Prost saiu melhor e Ayrton o pegou, na primeira curva. |
Toda ação gera uma reação, em qualquer que seja o segmento. Senna foi um tanto imprudente em bater daquela forma em Prost e num ponto tão veloz como é aquela entrada de curva de Suzuka, os carros poderiam ter enroscado as rodas e a coisa podia ter ficado grave. Mas Ayrton também já estava enfurecido com tudo que lhe havia sido feito naquele ano, desde a Suzuka 89 até Suzuka 90, e a não troca da posição da pole naquela largada foi apenas a gota d’água. Já Prost também estava engasgado com algumas atitudes da Mclaren. Ele sabia que com certa freqüência, Senna copiava as suas regulagens de chassi (assim como Hamilton fez com Alonso, lá mesmo na Mclaren, em 2007). E sem contar que Alain também publicou que Ayrton era favorecido com motores mais potentes, isso fora o ranço deixado pelas manobras em Estoril 88 e Ímola 89. As duas batidas não são justificáveis, mas foi o modo que acharam, de um uma incorreta e retardada, de se vingar um do outro.
Passados todas as hostilidades, a rivalidade adormeceu. Senna ainda continuou no topo e conquistou seu tricampeonato em 91, ao mesmo tempo em que Prost quebrou o pau na Ferrari e foi mandado embora. No final de 92, após um ano de recesso, Prost assinou com a Williams para 93 e no seu contrato, a seu pedido, Senna não poderia ir para equipe enquanto ele estivesse lá o que acabou com as chances dele tentar pilotar os “carros de outro mundo”.
Senna se prepara para passar por Prost e assumir a liderança em Donington, 1993 |
Alain encerrou a cerreira e Senna partiu para a Williams, onde veio falecer em maio de 94. Antes da prova de Ímola Prost conversou com Senna via rádio, no qual o brasileiro disse “Alain, você faz falta aqui”. Realmente parecia que os antigos rivais entrariam num consenso, mas nem deu tempo.
Foi uma batalha maravilhosa que confesso, será difícil de ser vista outra igual novamente e por tudo àquilo que aconteceu tenha sido chato, ficou como lição para os mais jovens. Talvez isso que tenha tornado a F1 um tanto chata pela falta de uma briga assim entre dois pilotos.
Talvez se Senna não tivesse assinado com a Mclaren, certamente teríamos perdido uma dos mais fantásticos capítulos que a F1 já viu.
O último duelo: os dois rivais posam para foto antes da disputa de um prova de kart organizada pelo ex-piloto Philippe Streiff, realizada em Paris-Bercy. Prost venceu. |