Houve um tempo em que morrer pilotando um carro de corrida –
não especialmente um F1 – era tão fácil quanto tomar um copo d’água. Era uma
época em que os pensamentos dirigiam ao mantra que “vai acontecer com o cara ao
lado, e não comigo”. Aliás, é um pensamento que ainda permanece em
menor escala, mas naqueles tempos era muito normal. A F1 tinha, em média, de uma a duas mortes por temporada e pouco era feito para melhorasse a
segurança dos carros. No início dos anos 60 começaram as primeiras novidades
nesse campo, como cintos de segurança, capacetes e roupas anti-chama (Nomex).
Mas como qualquer novidade, havia os que resistiam em absorvê-las mesmo sabendo
que aquilo poderia salvar-lhes de algum imprevisto. O cinto de segurança talvez
tenha sido o que mais causou resistência, pois os pilotos acreditavam que
aquela novidade poderia causar dificuldades de sair do carro em caso de um
incêndio e estando soltos ficaria mais fácil sair. Mas foi algo que acabou
sendo aceito com o decorrer dos anos, assim como as vestimentas anti-chamas que
substituíram as camisetas e os capacetes de face aberta, que tomaram o lugar
dos capacetes em formato de “pinico”. Olhando depois de tanto tempo, você
pensará “mas era o mínimo que podiam fazer”, mas também tem que levar
em conta que naquela época a morte em uma corrida era algo “aceitável”. Ignorante,
mas essa era a verdade.
As coisas mudaram de figura quando Jackie Stewart, durante o
chuvoso GP da Bélgica de 1966, disputado em Spa-Francorchamps, quase morreu ao
derrapar na pista molhada e destruir uma casa de lenhador na curva Masta Kink.
Não fosse a sorte de um espectador ter uma caixa de ferramentas por perto e
Graham Hill e Bob Bondurant serrarem cuidadosamente para não fazer qualquer
faísca (Stewart estava ensopado de água e... gasolina), Jackie teria agonizado
no meio dos destroços de sua BRM ou virado um torresmo. Como o próprio Jackie
disse mais tarde “não me preocupava com a questão da segurança até aquele dia”,
o piloto escocês começou uma cruzada forte pela segurança, em especial nas
pistas. Circuitos tradicionais como Spa (que ele odiava) e Nurburgring (que ele
também não era muito fã), foram alvos de críticas ferozes por parte dele. A
pista belga foi limada para 1971, depois de sofrer um boicote dos pilotos em
1969 e Nurburgring gastou os tubos em reformas para melhorar o asfalto e a
segurança ao redor do traçado, prolongando a sua vida no calendário até 76.
Outra coisa que apareceu no fim dos anos 60 e foi vergonhosamente rechaçada
pelos organizadores de GPs, foi a criação de um centro médico que acompanharia
a categoria nas corridas realizadas na Europa. Louis Stanley, então dono da
BRM, transformou um caminhão de 14 rodas num ambulatório que foi nomeado de
“International Grand Prix Medical Service” e que foi rejeitado pelos
inteligentes donos de circuitos por entender que aquilo não era necessário. Também deve ser dito que, além dessa criação geniosa, numa época em que morrer em corridas era totalmente "normal", Louis Stanley fez este caminhão pensando não somente nos pilotos, mas também nas pessoas que trabalhavam nas provas e no público. Ele também foi quem começou trabalhar incasalvemente pela melhoria das vestimentas dos pilotos contra o fogo, depois do acidente que matou Jo Siffert em 1971.
A cruzada de Stewart pela segurança continuou mesmo após a
sua saída. Emerson Fittipaldi, Dennis Hulme e Graham Hill ficaram a frente
dessa idéia e as coisas melhoraram um pouco: fardos de feno não existiam mais,
dando lugar as barreiras de Armco (guard-rails) e as telas de proteção; as
pistas eram inspecionadas, apesar de não ser nada parecido como hoje; os
pilotos tinham consciência do perigo e usavam macacões, luvas e sapatilhas
anti-chamas e capacetes fechados. Mas ainda faltava um treinamento melhor para
os socorristas, tanto que alguns acidentes, que se tornaram mortais, poderiam
ter sido evitados como o de Piers Courage (Zandvoort, 1970), Roger Williamson
(Zandvoort, 1973) – se bem que neste caso foi mais covardia, do que falta de preparo
– Peter Revson (Kyalami, 1974) – não havia socorristas por perto – e Tom Pryce
(Kyalami, 1977) – quando dois bandeirinhas mostraram como não se deve correr no
meio da pista com carros andando, e ainda portando um extintor. Era claro que,
além do espírito corajoso dos pilotos em melhorar o seu ambiente de trabalho e dar
ao público um espetáculo que não fosse uma carnificina a cada quinze dias, eles
precisavam de mais alguém engajado e que pudesse ajudá-los nessas melhorias.
Sid e Bernie numa conversa durante o fim de semana do GP da Argentina de 1979. (Foto: Sutton Images) |
A vinda de Sid Watkins, um renomado neurocirurgião, mudou as
coisas por lá. Sid já estava envolvido no automobilismo desde os anos 60,
quando montou uma equipe, com recursos próprios, para trabalhar na pista de
Watkins Glen numa altura em que foi convidado a dar aulas na Universidade
Estadual de Nova Iorque. Quando voltou para a Inglaterra, em 1970, foi
trabalhar como chefe de neurocirurgia do Hospital de Londres e no mesmo ano,
passou a integrar a junta médica do RAC (Royal Automobile Club). Watkins
conheceu Bernie Ecclestone em 1978 e o velho o convidou para ser o Delegado
Médico da F1 já naquele ano, que foi aceito por Sid que desse modo passou a
conciliar o seu trabalho de neurocirurgião com as provas nos fins de semana.
Mas a entrada de um médico nas corridas não foi fácil. A mentalidade
retrógrada dos donos de autódromos e organizadores, que ainda tinham em mente
que os acidentes mortais faziam parte do espetáculo, não aceitavam a presença
de um profissional da medicina em seus eventos. O chilique dos donos de
circuitos tinha uma razão clara: as instalações médicas eram as piores
possíveis e a melhor se resumia a uma tenda armada para primeiros socorros. Portanto,
com a presença de um médico geral, eles teriam que atender a todos os pedidos
deste e os custos com construção de ambulatórios de pronto atendimento, com
equipamentos de última geração para fazer os primeiros socorros a pilotos em
caso de graves acidentes, seriam altíssimos.
A primeira corrida em que Sid Watkins
trabalhou foi o GP da Suécia, mas foi em Hockenheim que ele enfrentou a
ignorância dos organizadores ao ser proibido de exercer o seu trabalho. Após
uma série e discussões e ameaças de não haver corrida, é que sossegou a ira dos
alemães e Sid pôde trabalhar em
paz. O GP da Itália também foi desastroso. O acidente que
moeu as pernas de Ronnie Peterson na largada poderia ter tido conseqüências
menores se Sid Watkins tivesse chegado à tempo ao local do acidente, mas ele
foi barrado pelos policiais que formaram uma corrente humana na área dos boxes,
não permitindo a passagem de ninguém. Foram mais de 18 minutos entre os
primeiros atendimentos e a chegada de uma ambulância para levar Ronnie para o
hospital, onde morreria no dia seguinte devido uma embolia múltipla. As reações
nestes dois episódios, principalmente o de Monza, levou Sid a exigir de Bernie
um anestesista, carro médico, helicóptero médico e melhores equipamentos para
pronto atendimento. Outra coisa que passou a ser inserida nas corridas foi a
presença do carro médico logo atrás do pelotão no momento da largada para uma
rápida intervenção em caso de acidente. Assim o risco de demora num atendimento
em uma carambola como aquela de Monza, diminuiria ao máximo.
Apesar da dureza dos donos/organizadores de corridas, essa
bolha foi furada e a segurança passou a primeiro plano. Qualquer pista que
quisesse sediar um GP deveria ter os requisitos de segurança, como guard-rails
reforçados, barreiras de pneus em locais mais perigosos, ambulatório com
aparelhagens para primeiros socorros e pessoas, desde bandeirinhas, passando
por bombeiros, médicos e enfermeiros treinados para o evento. Dessa forma,
junto da melhora dos carros que também tornaram-se mais seguros devido à adoção
da fibra de carbono no lugar de chapas de aço, discos de freios mais
eficientes, capacetes mais resistentes, roupas anti-chamas com o dobro, ou
triplo, de resistência ao fogo e outras melhorias, os números de acidentes com
pilotos feridos ou mortos diminuíram.
Foi um belo avanço e desde o acidente que matou De Angelis
nos testes em Paul Ricard,
em 1986, é que a categoria não registrou nenhum acidente fatal nem em testes e
muito menos nos fins de semana dos GPs. Os sustos com acidentes como os de
Piquet (Ímola 87), Berger (Ímola 89), Donnelly (Jerez 1990), Eric Comas (Spa
1992) e Zanardi (Spa 1993) mostraram o quanto os chassis eram fortes, mesmo que
o de Martin Donnelly tenha se desintegrado completamente em Jerez, aquilo foi
encarado como uma fatalidade. Para Sid Watkins a sua maior preocupação sempre
foi a elevada velocidade dos carros, que estavam atingindo níveis parecidos com
os dos carros asa e turbo dos anos 80. E ele tinha razão. O fim de semana do GP
de San Marino de 1994 revelou que os carros e circuitos ainda tinham muito que
melhorar, depois de Ratzenberger e Senna morreram em frente as câmeras de TV do
mundo. E tudo piorou quando Karl Wendlinger quase foi junto depois de um
acidente na chicane do porto, em Mônaco quinze dias depois. Aquilo tinha sido a
gota d’água.
Aquela hibernação da F1 em volto de uma segurança que apenas
recebia retoques, foi radicalmente melhorada. Crash tests nos cockpits, em
vários ângulos, tornou-se obrigatório; a redução na potência dos motores,
passando de 3.500cc para 3.000cc, foi adotada; os difusores foram revisados a
fim de diminuir a força descendente, que grudava os carros no chão mesmo nas
curvas (algo que parecia o efeito-solo), e assim diminuía a velocidade; e as
laterais do cockpit foram aumentadas para proteger a cabeça, pescoço e tórax
dos pilotos. As pistas passaram a ser inspecionadas com mais rigorosidade e
tiveram o aumento das áreas de escape (que mais tarde seriam asfaltadas,
tirando de linha as caixas de brita); barreiras de pneus foram instaladas em todos
os cantos possíveis e as chicanes apareceram e se alastraram feito uma praga em
todos os circuitos. E no campo médico, além do treinamento que ficou mais
rigoroso para os profissionais que trabalham nas corridas, os melhores
equipamentos estavam à disposição. A F1 passava a ficar mais segura e
profissional desse modo.
Sid Watkins apresentando o HANS - e usando Nick Heidfeld como manequim - em 2002 (Foto:Action Press) |
“Na minha opinião, as mudanças realmente grandes já aconteceram. O que
veremos nos próximos 50 anos será, tenho certeza, um refinamento dos temas
básicos da Fórmula 1. Por exemplo: como médico, eu não estaria interessado em
ver os carros mais rápidos contornando as curvas. Acho também que as velocidades
nas retas estão bastante apropriadas. Então tenho a impressão de que vai
ocorrer uma constante elaboração de regras a fim de manter os carros em torno
do nível em que estão hoje.” Este é um trecho, inicial de um artigo que
Sid Watkins escreveu para o terceiro volume da revista “Fórmula-1 – 50 Anos Dourados” onde ele fala do que já foi feito e
o que ainda poderia ser melhorado no esporte pelos próximos 50 anos. Neste
artigo ele ainda fala do seu desejo de implantar air bags nos carros de F1, mas
devido o pouco espaço do cockpit, este era um item que demoraria um tempo para
ser inserido na construção dos monolugares. Pouco tempo depois, ele apresentou
ao mundo o HANS (Head And Neck Suport) que evita a cabeça do piloto de ir para
frente após um acidente frontal, protegendo a cabeça e a coluna cervical.
Nestes seus 26 anos de trabalhos prestados a FIA, muito tem
que ser creditado e agradecido a Sid Watkins. Apesar de ter perdido algumas
vidas neste período, ele conseguiu salvar outras tantas e deu a sua
contribuição para o que automobilismo em geral melhorasse consideravelmente
neste campo da segurança, apesar de ele sempre saber que o risco jamais será
eliminado.
Se hoje nenhum piloto tem que ir ao enterro de um colega às terças pela manhã, como disse certa vez Denny Hulme, é a Sid Watkins que devemos agradecer.
Lendo o texto, o SID merece um documentario, no estilo do Senna , mostrandi um lado da F-1 quase desconhecido
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