Costumo falar para alguns amigos meus que estiveram nas duas vitórias de Ayrton Senna em Interlagos de que eu os invejo. Não tenho invejo de nada material que a pessoa tenha conseguido, mas invejo os grandes momentos que ela viveu. Acaba sendo um sentimento de admiração por algo que é único e que não se pode reproduzir. Para quem viu ao vivo, as emoções são únicas e certamente é levado para a eternidade como um grande troféu.
A vitória de 1991 foi a premiação de algo que Ayrton procurava há anos, principalmente do momento que esteve com um carro que lhe daria todas as condições para chegar a tal. Jacarepaguá 1988 e 1989 foram situações que ele poderia ter vencido e, talvez, com folga, mas os problemas na largada e desclassificação por ter pego o carro reserva (1988) e o enrosco na largada com Gerhard Berger e Riccardo Patrese (1989) frustrou suas intenções de chegar ao topo do pódio.
A badalada volta da Fórmula 1 à uma Interlagos revitalizada em 1990, sugeria que o campeão de 1988 chegaria a essa conquista. O seu andamento na prova era soberbo, mas a falta de cuidado em dobrar o seu ex-companheiro de Lotus, Satoru Nakajima, que na época estava a serviço da Tyrrell, tirou dele não apenas o bico do Mclaren MP4/5B, como também a chance de vitória. Teve que contentar-se com o terceiro lugar e assistir seu rival Alain Prost espoucar a champanhe pela sexta vez no lugar mais mais alto do pódio de um GP do Brasil.
Toda a expectativa para que Ayrton chegasse a sua primeira tão sonhada vitória em solo brasileiro se confirmou em 1991, mas não antes de ter a sua carga de drama: inicialmente, a presença de Nigel Mansell com o Williams FW14, que mostrava naquela etapa o poder que mais tarde seria revelado, foi uma temida sombra que acabaria sendo dissipada quando "Il Leone" rodou na volta 59, no S do Senna, com o câmbio travado. Porém, o que parecia ser uma vitória tranquila, ganharia seu ar de dramaticidade com Senna ficando, também, com problemas no câmbio ficando travado na sexta marcha pelas últimas 7 voltas. A conquista viria, tornando aquela uma das mais emblemáticas conquistas do piloto brasileiro.
Com toda a evolução que foi vista pela Williams já em 1991, era de se esperar que 1992 fossem um páreo ainda mais duro, mas foram além e transformaram o FW14B numa máquina temível e assim foi, a ponto de dar a Nigel Mansell a chance de chegar ao seu único título mundo. Em Interlagos foi um passeio por parte deles e para a Mclaren, com Ayrton Senna e Gerhard Berger, um pesadelo onde a equipe não sabia o que fazer - já que levaram sete carros para aquela corrida (três MP4/6B e três novos MP4/7). O fracasso seria sacramentado pelo abandono de Berger na volta 4 e de Senna na volta 17. Algo inimaginável para aquela que foi a melhor equipe das últimas quatro temporadas.
A era de ouro da Mclaren Honda havia passado.
Ano novo... novo domínio da Williams, mas...
Para a Mclaren também foi um início complicado com Ayrton Senna negociando a sua participação corrida a corrida, o que levantava a cada GP um suspense se o tricampeão estaria ou não no grid. Coincidentemente, houve uma caça às bruxas com Alain Prost que havia criticado fortemente a F1 no final de 1992 e agora era alvo de investigação da FISA, que chegou ameaçar o então tricampeão com uma suspensão de até quatro corridas - claramente isso foi resolvido mais tarde e Alain correu normalmente. Sem dúvida alguma, Bernie Ecclestone e FISA/ FIA não ficariam felizes em ver seus dois principais astros de fora justamente numa temporada em que a F1 conheceria o segundo piloto da história a chegar a 4 títulos mundiais.
A primeira etapa, o GP da África do Sul em Kyalami, nos brindou com um início vertiginoso onde Ayrton Senna batalhou contra Alain Prost pela liderança nas primeiras voltas. Infelizmente problemas com a suspensão ativa tirou dele a oportunidade de continuar a forçar uma briga com o francês, mas aquela voltas iniciais trouxeram uma impressão de que, caso a Mclaren pudesse desenvolver o seu MP4/8 com louvor, poderia sim desafiar o FW15 da Williams pelo restante da temporada. Alain venceu em Kyalami e Ayrton, quase 1 minuto e 20 segundos depois, terminaria na segunda posição. Mas as impressões daquela tarde em Kyalami eram esperançosas.
Com a chegada da Fórmula 1 à Interlagos essa esperança seria colocada a prova e os treinos foram um balde de água gelada nas pretensões de Senna e Mclaren - e claro, na enorme expectativa da torcida brasileira. Na primeira tomada de tempos, Alain Prost chegou a marca de 1'16"809 sendo mais de 1 segundo melhor que Damon Hill e quase dois melhor que Ayrton Senna. Uma lavada que o próprio Alain fez questão de destacar: "Acho difícil a Mclaren de Senna bater a minha marca, mas vai chegar perto". Na segunda e decisiva qualificação, Senna realmente melhorou seu tempo baixando para 1'17"697, mas Prost também baixaria seu tempo para 1'15"866, mantendo os quase dois segundos de vantagem para o brasileiro que assegurou o terceiro lugar. Em segundofl ficou Damon Hill e em quarto Michael Schumacher. Rubens Barrichello era o 14° E Christian Fittipaldi o 23°.
Ayrton Senna sabia que seria bem complicado conseguir desafiar o poder de fogo da Williams ali em Interlagos. Em entrevista para o Jornal da Tarde no final do primeiro classificatório, ele disse que "Honestamente, não esperaria poder confrontar as Williams". Porém, antes que os treinos começassem, ele ainda nutria a esperança de que a Mclaren estaria no encalço da Williams. No entanto, como já foi dito aqui, essa esperança se dissipou: "A diferença é grande, não esperava que fosse tão substancial aqui no Brasil". Ele destacaria ainda que a força do V10 da Renault e os problemas eletrônicos que o seu Mclaren enfrentava naquele momento, impossibilitaria um confronto. Ironicamente, até mesmo, para ele que era reconhecidamente o melhor em pista molhada naquele momento, uma classificação ou corrida na chuva poderia ser desastrosa: "Espero que o tempo esteja seco porque nunca andei com esse carro em piso molhado. É mais provável que tenha uma surpresa desagradável do que uma agradável. A máquina é muito complicada."
Ironicamente, isso acabaria por ser uma arma importantíssima para o que viria acontecer no domingo.
Uma tarde de festa em Interlagos
Mesmo com tudo que foi visto nos treinos livres e de qualificação, era possível acreditar em algum resultado que não fosse a vitória da Williams em Interlagos? Era quase certo que essa conquista viesse, mas sempre existe alguma situação onde o imponderável acabará mudando o curso da história.
O plano inicial de Senna era se meter no meio das duas Williams e ele aproveitou-se bem da má largada de Damon Hill para quebrar essa dobradinha inicial dos carros ingleses. Enquanto que Ayrton fazia uma bela largada, Michael Andretti se envolvia num mega acidente com Gerhard Berger - que já havia batido forte na sexta no muro da reta oposta. Para a sorte deles, foi apenas um susto.
O decorrer daquelas voltas ficava evidente que Ayrton estava andando no limite: primeiramente para não perder contato com Prost e consequentemente abrir uma vantagem decente para manter Damon Hill longe, mas isso cairia no decorrer das voltas com Alain indo embora e Hill se aproximando a ponto de superar o brasileiro na volta 11. É bem provável que naquele momento, o sentimento é de que, se havia alguma chance, esta tinha se esvaido e uma dobradinha da Williams era certeira.
O tempo sempre instável de São Paulo é algo a ser considerado, ainda mais para uma corrida de automóveis e na 18° volta algumas gotas começam aparecer justamente no momento que Ayrton Senna, lutando contra Michael Schumacher pela terceira posição, leva um Stop & Go por ter ultrapassado Eric Comas na Subida da Junção quando aquele trecho estava em bandeira amarela, proveniente do resgate ao Jordan de Rubens Barrichello que abandonara na volta 15. Senna pagou a punição na volta 24, no momento que a chuva passava a estar mais presente.
Provavelmente, se a corrida fosse feita toda em pista seca, a Williams teria a grande chance de levar com a dobradinha Prost/ Hill que estavam intocáveis, mas quando a tempestade chegou ao autódromo, o cenário mudou completamente como um passe de mágica: os acidentes de Aguri Suzuki e Ukyo Katayama, separados por pouco tempo na reta dos boxes já encharcada e com a visão limitada por conta, deixou uma verdadeira armadilha naquele ponto. Senna e Hill foram espertos em trocarem seus pneus para os de chuva, mas Alain Prost não conseguiu entender o rádio - que vinha com defeito - e passou reto para mais a frente escorregar 3 bater no Minardi de Christian Fittipaldi que estava encalhado na brita do S do Senna.
Alain Prost comentou sobre este momento para o Jornal da Tarde, relatando sobre o fato de ter dado mais uma volta no momento em que a chuva estava forte e a com reta tomada de destroços: "Meu engenheiro falou alguma coisa que não entendi. Achei que estavam me avisando que o Damon ainda estava no box. Não fiquei muito contente, mas decidi dar mais uma volta." O problema é que mais a frente é que se daria o fim de prova para o francês: "Peguei alguma sujeira, alguma coisa deixada pelo carro dele (Fittipaldi) e aquaplanei. Se o carro (Minardi) não estivesse parado ali, acho que conseguiria controlar o meu e continuar na prova." , relatou.
Com a saída de Prost e a corrida sob a intervenção do Safety Car - uma tremenda propaganda para a FIAT com o seu Tempra puxando o pelotão - o que seria dali pra frente? Um Damon Hill dando continuidade ao domínio da Williams ou um Ayrton Senna partindo para cima, vendo que a chance estava perto? Com a saída do SC, o cenário parecia ter mudado à favor de Senna com ele andando próximo de Hill, mas... aquilo devia ser apenas pelo fato da pista ter ainda alguns pontos úmidos?
O sol conseguiu secar boa parte do circuito e isso sugeria que o uso dos slicks era uma boa pedida. Senna e Schumacher foram para os boxes para colocarem estes pneus. Ayrton voltou sem problemas e Michael ficou por lá, com problemas no macaco manual. Um desaire que tira o piloto alemão de uma possível chance de vitória.
Na volta 42, uma depois que Senna havia feito a sua parada, Hill foi aos boxes para efetuar a sua parada. Feita sem nenhum problema, ele ainda voltara na frente do piloto brasileiro, mas um astuto Ayrton Senna não deu tempo para o inglês adaptar-se aos novos pneus e o ultrapassou na entrada para o Laranjinha num dos lances mais bonitos da corrida e da temporada. "A troca de pneus de chuva por slick aconteceu num momento importante. A ultrapassagem sobre o Hill também marcou. Eu vinha embalado, quando ele saía do box naquele momento. Sabia que tinha de ultrapassar naquela meia volta, se não fosse ali, não passaria mais. Eu vim no embalo, quando cheguei na curva do Laranja. Ele percebeu que eu vinha e tentou ficar por dentro para não deixar eu ultrapassar. Então vim por fora e ele veio por fora também. Aí voltei para dentro. Catimbei ele um pouco para poder ter oportunidade de passar e deu certo." relatou Ayrton ao Jornal da Tarde.
Essa manobra deu a ele a oportunidade de abrir uma vantagem de dois segundos que depois seria administrada e posteriormente aumentada, quando eles começaram a pegar tráfego. Pelas palavras do próprio Ayrton, "Em pista limpa, andando nós dois sozinhos, ele era mais rápido. Se ia passar ou não era outra coisa." Com todo este jogo tático que Ayrton impôs depois de assumir a liderança, deu a ele uma confortável diferença para Hill que chegaria a 16 segundos no final da corrida.
Essa corrida ainda seria brindada com a grande recuperação de Michael Schumacher: com os problemas no pit-stop, ele despencou de terceiro para nono e precisou usar tudo do que a sua Benetton B193A lhe oferecia para escalar o pelotão. Conseguiu e estaria em quarto na volta 65 e desta até a 68ª ele entraria num confronto com Johnny Herbert pelo terceiro lugar. Mesmo levando um X do piloto inglês no contorno da Descida do Lago, Schumacher ganharia o terceiro lugar no início da volta 69 e ainda levaria a melhor volta do GP após uma sequência de cinco voltas onde ele quebrou em sequência o próprio tempo.
Ayrton caminhava para uma tranquila conquista? Pelo que o mesmo relatou, o susto se fez presente nas últimas dez voltas: "Nas últimas dez voltas, percebi que o carro não estava bem. Aliviei mesmo um pouco pensando que o problema era motor. Falei: pronto, vai quebrar. Era só o que faltava! Vinha rezando. Eu não poderia perder a corrida por uma bobagem como essa." A pressão do óleo estava alta naquele fim de prova.
Com ele poupando o equipamento, a derradeira volta foi um desfile de Ayrton para receber a quadriculada e eclodir uma festa ainda maior do que fora em 1991. A alegria dos comissários de pista e a torcida indo a loucura no final da reta oposta, invadindo a pista a ponto de Ayrton ter que parar o Mclaren após acertar um dos torcedores. Mas a festa era tamanha que isso não intimidou o restante dos torcedores que cercaram o Mclaren para poder ficar próximo do ídolo. A imagem de Senna surgindo do meio da multidão e festejando junto a eles, é emblemática.
Sem poder voltar com a sua Mclaren para os boxes, Ayrton pegou carona com o SC e dali do final da reta oposta até chegar nos boxes, ele foi na janela saudando toda torcida e comissários que estavam espalhados pelo traçado do autódromo paulistano. Mais uma cena apoteótica para um já inesquecível dia, que ainda teria a presença de Juan Manuel Fangio para a entrega do troféu ao vencedor. Teríamos outra cena registrada para a história com Ayrton descendo do pódio para cumprimentar e abraçar o pentacampeão.
Apesar de quase todos imaginarem que uma vitória seria difícil, é claro que a esperança de acontecer algo ainda era alimentada. Talvez até contentassem com um terceiro lugar de Senna naquela prova, mas o abandono de Prost trouxe um reforço a essa esperança de que podia sim haver uma vitória. A fabulosa ultrapassagem de Senna sobre Hill e o seu ritmo diabólico para poder abrir o que podia sobre o inglês, foi a certeza de que ela viria. E veio. Foi a melhor forma de brindar um público que saiu extasiado com o que vira naquela tarde.
Ayrton Senna ainda brindaria a todos com outras vitórias naquele ano, mas essa em Interlagos tornou-se um dos grandes clássicos da gloriosa carreira do piloto brasileiro. E claro, para aqueles que estiveram in loco e também para os que estavam em casa, como este que vos escreve.