Me recordo de uma frase dita por Tony Kanaan durante uma
matéria que foi exibida antes das 500 Milhas de Indianápolis deste ano, onde
ele dizia que
“que aquela pista tinha vida própria. Ela escolhia quem deveria
vencer naquele ano”. De certa forma ele tem razão: quantas foram as vezes que
vimos um piloto estar com a vitória garantida no Brickyard e simplesmente por
um problema mecânico ou acidente, perdê-la? Foram muitas até. Acho que essas
pistas míticas, como é o caso de Indianápolis, costumam pregar essas peças
tendo a participação ativa dos “deuses do automobilismo” na escolha de quem
deve receber todas às glórias da conquista. A pista de Sarthe, a exemplo de sua
“irmã mais velha”, tem esse dom de nos surpreender.
Olhando friamente esta edição, quem poderia apostar algo num
trio em que dois deles visitavam a pista francesa pela primeira vez? Certamente
as apostas repousavam sobre os mais velhos: o Porsche #18, com aquela fabulosa
pole feita por Neel Jani, nos deixava com a dúvida se aquele desempenho ultra
veloz poderia repetir-se em algum estágio de um certamente tão longo e cheio de
armadilhas que é esta prova; o outro Porsche #17, o vermelho que remete ao legendário
917K de 1970, o primeiro Porsche a vencer na geral em Le Mans, carregava a
experiência do ano anterior e um vencedor da prova (Timo Bernhard). Por outro
lado, o favoritismo da Audi era forte, principalmente por conta do carro #7 com
a trinca atual vencedora (Marcel Fässler/ André Lotterer/ Benoit Tréluyer).
Toyota, a atual campeã do mundo apresentava-se abaixo da média e a Nissan...
bem, as condições do seu novo protótipo são bem criticas descartando qualquer
chance de lutar por algo melhor. Ou seja, a luta dar-se-ia entre as duas fábricas
alemãs.
A classificação tinha sido um show a parte por conta da
Porsche: simplesmente três carros tomando conta das três primeiras posições,
dando a entender que criariam uma “barreira” a qual a Audi e os demais
pretendentes deveriam transpor caso quisessem assumir a liderança. A volta de
Neel Jani tinha sido mágica: cravando um tempo absurdamente veloz (3’16’’8), a
melhor para esta era dos LMP1 em Sarthe e uma das melhores de todos os tempos
do traçado, entrando para o top 10 deste quesito. Os outros dois Porsches
acompanharam o ritmo e fizeram bons tempos, a ponto de apenas administrarem
essas marcas na quinta-feira. Isso deu a Porsche a tranquilidade de trabalhar
no ritmo de prova, testando alguns stints para a corrida. A Audi pouco se
aproximara, mas a carta na manga para os dois de corrida já estava guardada,
que era puramente estratégia baseada nos pneus, cujo trunfo deste R18 e-ttron Quattro é na economia dos
pneus frente a sua co-irmã. E tinha sido isso, aliado a
erros de estratégia da Porsche e pilotagem de seus pilotos, que garantiram os
dois sucessos para fábrica das quatro argolas nas duas corridas iniciais. Se
para uma sobrava a manha de Sarthe, para a outra restava apenas a fabulosa história
que tinha sido construída sobre as suas 16 vitórias anteriores. A Porsche tinha
que dar uma resposta a si própria: recuperar-se de erros que tinham roubado
deles vitórias em Silverstone e Spa, era uma questão de honra e Le Mans é um
palco perfeito para este tipo de situação.
A corrida estava a ser um clássico do endurance: enquanto
que a Porsche dominava as ações com o #17 e #18, a Audi subia com seu ataque em
“bloco”, com o #7, #8 e #9 a atacar o #19 e superá-lo rapidamente. Conforme as
horas foram passando, ficava claro que o #17 da Porsche parecia ser o mais
tarimbado para guiar a equipe ao triunfo, e essa idéia se reforçou quando a
Audi começou a enfrentar seus primeiros problemas: enquanto que o #7 voltava
aos boxes alguns giros depois de seu pit-stop para trocar um pneu furado, num
momento que estava prestes a assumir a liderança, o #8 acabou acidentando-se na
parte de Indianápolis num trecho que deveria estar em bandeira amarela (slow
zone) e que os comissários se atrapalharam ao sinalizar com a verde. Com os
carros – em boa parte os GTs – desacelerando, Duval passou por uma Ferrari por
fora e bateu de frente, danificando totalmente a dianteira. O carro foi levado
aos boxes e alguns minutos depois, devolvido à pista, mas com a prova
totalmente comprometida.
O período de Safety Car foi importante para que os carros se
juntassem e ao dar a relargada, o duelo entre o Porsche #17 e o Audi #9
levantou a torcida nas arquibancadas com uma disputa visceral entre estes dois
carros. Para Filipe Albuquerque, no comando do Audi #9, foi um momento
brilhante: aproveitando-se bem do vácuo do #17, conseguiu quebrar naquele
momento o recorde de melhor volta para aquela pista que já durava 44 anos, e
que pertencia à Jackie Oliver. Mais tarde esse recorde voltaria a ser quebrado
pelo Audi
#7 com Lotterer ao volante, ao descer dos 3’17”6 de Albuquerque para
3’17”4. Infelizmente problemas mecânicos e outros contratempos tirariam
qualquer chance destes dois Audis de vencer: o #9 teve problemas com seu
sistema híbrido e viu suas chances caírem por terra; para o #7, a carenagem solta
também atrasou bastante o passo deste trio que tentava o seu quarto triunfo em
Sarthe. De se elogiar sempre a pilotagem de André Lotterer, que desde um bom
tempo tem se mostrado o melhor piloto de endurance do momento. A tocada limpa e
precisa, entremeada com velocidade pura e cadenciamento – quando é preciso –
tem sido a alma desse trio, sinceramente. O trabalho do trio do Audi #9 também
precisa ser elogiado ao máximo, ainda mais Filipe Albuquerque com uma pilotagem
muito precisa. Não foi de se estranhar a alta expectativa que foi criada em
torno deles neste terceiro carro, especialmente montado para Le Mans, pois o
ritmo estava excelente e tinham boas chances de disputar e sair com a vitória.
A Porsche também teve lá os seus problemas: o #17 parecia intocável
e num passo firme para abrir caminho em meio aos retardatários e isso foi o que
acabou matando as chances deste trio, quando Webber fez uma ultrapassagem em
bandeira amarela e teve que pagar um penalty que o jogou um pouco para trás na
classificação. Enquanto isso, o #18 enfrentava problemas – aparentemente de
freios – que fez o carro escapar duas vezes para fora da pista e deixar as
coisas complicadas para aquele trio. A surpresa para a Porsche foi o #19 ter um
ritmo excepcional em todas as fases da prova: enquanto que o gêmeo #17 e #18 travava
duelos contra os três Audis, este ficava apenas acompanhando de perto sem nunca
perder contato com os ponteiros, esperando exatamente a sua vez na corrida.
Quando assumiu a liderança ainda na nona hora, eles não largaram mais e
entrando numa zona mais fria que é a noite e madrugada, igualaram a batalha com
a Audi em consumo de pneus e isso deixou seus pilotos mais à vontade para ditar
o ritmo. O trio mandou a bota – especialmente Earl Bamber no meio da madrugada
– que deixou o #19 em boa condição de administrar a vantagem e apenas responder
quando fosse preciso. Os problemas na carenagem do Audi #7 os deixou ainda mais
perto da vitória, principalmente por estarem
levando uma volta de vantagem
sobre o #17 e três sobre o #7. Apenas um desastre tiraria essa conquista.
Restou apenas a Nico Hulkenberg assumir o comando e guiar o carro de forma
imaculada a uma vitória inédita para os três.
Em relação aos japoneses, coube apenas a decepção: a Toyota
nem foi sombra do desempenho que fez ano passado ao fechar em sexto e oitavo
(#2 e #1) com oito e nove voltas, respectivamente, de desvantagem para o
vencedor. Vencer neste ano, somente com um golpe de muita sorte. A Nissan
largou com seus três carros e nenhum completou, nesta que foi um dos maiores
papelões da história recente da prova. Despejar altas doses de dinheiro e não
desenvolver um protótipo de forma decente para ao menos andar com dignidade
próxima as outras fábricas, foi de jogar o nome da Nissan na lama e pisotear.
Para a Rebellion, que estreou seu R-One nesta corrida, foi
uma prova mais que tranqüila, pois a ByKolles não ofereceu nenhuma resistência
a equipe suíça que venceu entre as particulares na LMP1.
As outras categorias
LMP2
A KCMG dominou amplamente aquela classe, sendo que desde a
segunda hora eles assumiram a liderança e não largaram mais. Nicolas Lapierre/ Richard
Bradley/ Matthew Howson deram à KCMG a primeira vitória em Le Mans nesta classe
e particularmente, para Lapierre, foi a desforra após ter sido dispensado pela
Toyota ano passado, tirando dele a chance de ganhar o campeonato junto de
Davidson/ Buemi. Ainda tendo visto que o desempenho da Toyota foi bem pífio, o
prazer desta sua conquista deve ter sido ainda maior.
A segunda colocação foi da Jota Sport, que enfrentou
problemas de câmbio no inicio do certame, conseguiu uma bela recuperação
devido, especialmente, a pilotagem de Mitch Evans e Oliver Turvey para abrir
caminho na parte final e conseguir o pódio frente ao #26 da G-Drive e o #48 da Murphy
Motorsport.
A única equipe que parecia ainda com ritmo para dar combate
ao carro da KCMG era o #46 da Thiriet, mas este acabou sendo acertado pelo
Aston Martin #99 (com Fernando Rees ao volante) e ficando de fora.
LMGTE-PRO
As disputas nessa classe são sempre o grande atrativo, e
neste ano não foi diferente: Ferrari, Corvette e Aston Martin estiveram numa
luta brutal pelas primeiras posições e que foram decididas através dos
problemas e acidentes que iam tirando os carros de linha.
Para a Corvette acabou sendo uma prova recompensadora após a
perca do #63 nos treinos, após o acidente de Jan Magnussen que impossibilitou
os reparos no carro. Apesar de um início bem tímido, o trio formado por Oliver
Gavin/ Tommy Milner/ Jordan Taylor, foram subindo na classificação aos poucos e
os problemas com os rivais mais diretos ajudaram bastante a conseguir uma
importante e gratificante vitória para eles e Corvette, que não vencia desde
2011.
A Ferrari perdeu uma corrida que poderia ter sido dela, não
fosse os inúmeros problemas que rondaram os #51 e #71 da AF Corse. Enquanto que
o #51 se viu envolvido no enrosco do Audi #8 fazendo com que ele fosse ao boxe
reparar os danos, voltando bem trás dos seus rivais, o #71 estava em grande
forma ao disputar diretamente com a Aston e Corvette a dianteira da prova, mas
problemas no motor de arranque atrasaram suas pretensões. Mas a Ferrari tinha
ganho um fôlego com o retorno do #51 à disputa e com chances de ameaçar a Corvette,
mas problemas com o câmbio forçaram a saída momentânea de Gianmaria Bruni/ Toni
Villander/ Giancarlo Fisichella da prova, conseguindo voltar para terminar em
terceiro. A segunda posição acabou para a outra Ferrari #71 de Davide Rigon/
James Calado/ Olivier Beretta, numa boa recuperação do trio.
Para a Aston Martin, que estava com ótimas chances de vencer
nessa classe, restou apenas a desilusão de ver seus três ficarem de fora por
problemas mecânicos - #95 e #97 – e o #99, que estava na disputa direta, ter se
acidentado quando Rees estava para ser dobrado pelo #46 da LMP2.
Os Porsches do Team Manthey foram verdadeiros coadjuvantes
nesta edição, sem ter lutado pela liderança em momento algum. Enquanto que o
#92 foi limado da prova logo no início por uma quebra de motor, o #91 ainda
tinha esperanças de beliscar um pódio, mas um vazamento de óleo tirou essa
chance deles.
LMGTE-AM
Apesar da forte oposição vindo da Ferrari #72 da SMP Racing,
não era de duvidar muito que a vitória não escaparia das mãos do trio Pedro
Lamy/ Paul Dalla Lana/ Mathias Lauda. Porém, quando faltavam menos de 50
minutos para o fim, Dalla Lana acabou escapando e batendo forte na curva chicane
Ford e tirando a chance de vez de vitória. Coube ao trio do Ferrari #72 –
Victor Shaytar/ Andrea Bertolini/ Aleksey Basov vencer a prova.
A segunda colocação ficou com a Dempsey-Proton Racing com
seu Porsche #77, guiado por Patrick Dempsey/ Patrick Long/ Marco Seefried,
nesta que foi a melhor colocação da equipe em Le Mans.
E a terceira foi da Ferrari #83 da AF Corse com François
Perrodo/ Emmanuel Collard/ Rui Águas.
Mais um grande dia para a história de Le Mans
Sem dúvida foi outro grande dia para os inúmeros
acontecimentos que já entraram para história dessa grande prova. Um ano após o
seu retorno a classe principal, a Porsche nos brindou com uma vitória
irretocável de um trio que nem estava entre os favoritos para a conquista dessa
corrida. Foi o primeiro carro não diesel a vencer em Sarthe em dez anos.
Por outro lado, ter convivido com a desconfiança da maioria
em torno da sua confiabilidade, foi um verdadeiro cala a boca com toda força e
competência que é normal de uma equipe alemã. As lágrimas do diretor da Porsche
e dos outros integrantes, assim como de Nico Hulkenberg, traduzem e muito todo
o trabalho que foi feito até aquele momento. Para a Porsche, um desafio e tanto
com este projeto do 919 Hybrid e para os pilotos, uma conquista histórica,
particularmente falando.
Enquanto que Nick Tandy era o mais experiente dos três com
duas participações em Le Mans, Earl Bamber era um bicampeão da Porsche Super
Cup Ásia e assim como Nico Hulkenberg, fazia o seu debut na maior prova de
endurance do mundo. As prestações que estes três tiveram a bordo do 919 Hybrid
#19 foi de um primor altíssimo: seguraram bem o ritmo no início da prova,
ganharam posições conforme os da frente iam tendo problemas e assumiram a
liderança no meio da noite para não largar mais, sempre com velocidade pura por
parte dos três. Foi um trabalho recompensado com uma inédita conquista para os
três: Bamber e Hulkenberg tornaram-se os primeiros pilotos a vencerem as 24
Horas de Le Mans logo na sua estréia – o último tinha sido Aurent Aiello em
1998 com a... Porsche, exatamente na última conquista da marca. E Nico foi o
primeiro piloto da F1 em atividade a vencer a prova desde a conquista de Johnny
Herbert e Bertrand Gachot na vitória pela Mazda em 1992. Para a Porsche foi a
17ª conquista em Sarthe e no mesmo dia que completa outra data importante para
o time de Stuttgart: há 45 anos eles chegavam a primeira vitória no geral em Sarthe,
com o 917K de Hans Hermann/ Richard Attwood. Melhor dia para esta conquista,
não existe.
A Porsche retoma as chaves de casa e agora é uma forte
ameaça ao império conquistado pela Audi nos últimos anos.
Habemus duelo!